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Roma, Sinti e Calon: uma realidade brasileira. (português)

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Entrevista com Márcia Yáskara Guelpa e Nicolas Ramanush

Nesta edição migrazine.at entrevista dois representantes da comunidade Roma no Brasil. Márcia Yáskara Guelpa, Presidente da CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana[1] e Nicolas Ramanush, o então presidente da Embaixada Cigana[2] do Brasil - Phralipen Romani .

migrazine.at: Referente às três comunidades Roma representativas no Brasil : os Roma (vindos da ex-Iugoslávia, Sérvia e de outros países do Leste Europeu), os Calon (que vieram da Espanha e de Portugal) e os Sinti (vindos da Alemanha, Itália e França), o que tem em comum e em que divergem?

Márcia Yáskara Guelpa: Os Roma não formam uma totalidade homogenia. Não são linguística, econômica, cultural e socialmente iguais. Na Internet encontramos inúmeras reportagens sobre os Roma, mas, nem todas são coroadas pela veracidade. A maioria tenta explicar, mas sem nenhum real fundamento, ideias que se foram construindo sobre os Roma, a partir do século XV, e que se cristalizaram na forma de estereótipos e folclore. Portanto, fala-se sobre o Roma de maneira romântica ou alarmista e, por incrível que pareça, levando a realidade a ultrapassar o imaginário.

Nicolas Ramanush: Em comum Rom, Caló e Sinte temos o fato de nos auto-denominarmos "Roma". Ainda que, indivíduos de cada um desses grupos costume dizer-se o verdadeiro Roma, não reconhecendo a romanidade do outro grupo. Exemplo: é muito comum em um acampamento ouvir de um Caló que ele sim é Roma, por esse ou aquele motivo. E o mesmo se ouve entre membros de outros grupos com relação a si próprios, negando a romanidade de outros. E isso acontece pelo fato de que cada indivíduo, seja Rom, Caló ou Sinto, se auto-identifica como Roma e tem o reconhecimento dentro de seu grupo. As divergências são muitas e existem por diversos fatores: as diferenças dialetais do Romani; os valores culturais adquiridos, por cada grupo, nas regiões de permanência após a saída da Índia; e as especificidades culturais que cada grupo já possuía antes mesmo de deixar a Índia.

Analisemos cada um desses fatores para que possamos entender melhor: 

- as diferenças dialetais são tão significativas que pela existência delas, ainda não possuímos uma normatização para o Romani. Nossa língua ainda é considerada ágrafa (fato que vem sendo trabalhado desde o Congresso Internacional ocorrido em 1978, quando ficou decidido a necessidade da normatização do Romani); 

- os valores culturais adquiridos nas regiões de permanência criaram sérias divergências, inclusive de ordem religiosa: Roma que ficaram em Turquia, converteram-se em larga escala ao Islamismo, os que ficaram na Grécia, ao Catolicismo ou Cristianismo Ortodoxo e aqueles que chegaram ao continente Americano, ao Protestantismo. E, por exemplo, ao contrário dos Judeus que professam o Judaísmo (fator de coalisão) não há entre nossos grupos um sistema religioso que predomine;

- as especificidades culturais que cada comunidade possuía, ainda na Índia, eram oriundas do sistema de "castas", cuja existência se dava pela divisão e subdivisão entre a população indiana. A exemplo disso posso citar o rito do casamento, do funeral e da viúvez . Que talvez por atavismo, principalmente entre a comunidade Calon, ocorrem aqui no Brasil quase que da mesma maneira como ocorriam entre as castas Roma de mil anos atrás, na Índia:

- o casamento é endogâmico e contratado pelos pais dos jovens;
- no funeral queima-se tudo o que pertenceu ao defunto;
- as viúvas costumam guardar luto "eterno". Ainda hoje, em muitas regiões da Índia, a viúva é vista como um peso para a família. E como é rodeada por muito preconceito e superstição, enclausura-se em lugar próprio para ela.

migrazine.at: Ao longo dos anos vividos no Brasil, o Roma tem sido discriminado até mesmo entre eles próprios; sendo que a língua também é um diferencial, visto que os Roma e os Sinti falam o romanês e os Calon falam o shib kalé (fusão do romanês com o espanhol e o português). Ante a essas diferenças, o que motivou a formação da Associação de Ciganos Calon como organização?

Márcia Yáskara Guelpa: Não conheço nenhuma Associação de Ciganos Calon. Se existe não me foi apresentada. Aqui em São Paulo existe, sim, o CCB – Coletivo de Ciganos Calon do Brasil. Sou Presidente da CERCI- Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana e durante 5 anos representei a Apreci- Associação de Preservação da Cultura Cigana, na CNPCT - Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em Brasília. Quanto à língua falada pelo Roma, podemos dizer que, embora o romani seja a sua língua original, temos que reconhecer ser parcialmente uma língua de origem indiana, uma vez que inúmeras palavras de origem persa, turca, grega, armênia, curda romena e de outros países por onde os Roma passaram, foram ao romani agregadas. Para elucidar informamos que somente na Europa os romas falam cerca de 60 dialetos diferentes. Aqui no Brasil, eu diria, somente Rom da comunidade Roma falam, realmente, o Romani, e ainda assim, nem todos. A maioria dos demais fala caló, que na realidade é um dialeto falado principalmente na Península Ibérica e, ainda assim, com pequenas diferenças. O caló dos Roma nortistas e nordestinos é bem diferente do falado no sudeste e sul do Brasil.

Resumindo: aqui no Brasil muitos Roma só mantém uma base léxica do romani, com uma variedade incrível de “falares”. Perderam a língua, o que é uma pena.

Nicolas Ramanush: Essas diferenças que você cita em sua pergunta (língua e preconceito) são naturais e inerentes ao ser humano. Exemplo, em um país como o Brasil cuja população atinge a cifra de 200 milhões, as diferenças dialetais (nordestino e sulista) geraram o preconceito lingüístico: "acreditam que no sul se fala um português mais correto do que aquele falado no nordeste". E isso acontece quando na realidade o falar não pode ser regulado e avaliado pela gramática. E o desconhecimento dessa verdade é que leva as pessoas ao preconceito.

Bem, o que motivou a instituição da Embaixada Cigana do Brasil - Phralipen Romani não teve a ver com essas diferenças e sim com a tradição. Meu pai, nascido em Saint Marie de la Mer, sul da França. Veio para o Brasil como refugiado da Primeira Guerra Mundial. E mesmo sendo um homem culto era analfabeto (falava quatro línguas e apenas sabia assinar o próprio nome). E digo culto porque, mesmo sendo analfabeto, ele soube transmitir a mim as práticas e os valores de nossa comunidade - Sinte-Valshtike - e isso é manter a tradição. Portanto, a tradição, aprendida no berço, foi o que motivou a instituição da Embaixada Cigana do Brasil. E como não poderia deixar de ser, o Estatuto da mesma diz que nosso maior objetivo é: o resgate, a manutenção e a difusão de nossos valores tradicionais. Fato que não nos tem impedido, ainda que sem ajuda do próprio governo brasileiro, a prestar serviços de assistência social aos grupos de Caló que ainda vivem à margem da sociedade e encontram dificuldade em sua integração.

migrazine.at: Durante a sessão especial do Senado Federal para comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra esteve presente a Sra. Marlete Queiroz, representante da comunidade Roma, na ocasião enfatizou que há 800 mil acampamentos Roma no Brasil e que trata-se de "um Brasil invisível", já que esses Roma não têm direito sequer a uma certidão de nascimento. Considerando a luta de etnias e raças pelos direitos humanos, existe aliança entre os movimentos indígenas, negros e outras etnias?

Márcia Yáskara Guelpa: Costumo dizer que há 600 mil Roma no Brasil e ainda assim essa minha afirmação não passa de suposição. O fato é que o governo brasileiro não sabe quem e quantos somos e, sobretudo, onde estamos. Visitou, é fato, alguns acampamentos, mas um número tão ínfimo que certamente não dá para elaborar quaisquer afirmações a respeito. Quando o governo esteve a visitar a cidade de Souza, por exemplo, esqueceu ou não sabia que ao redor de Souza existem inúmeras cidades que abrigam Roma e não foram visitadas. Por quê? Refiro-me a Marisópolis, Orebe, São João do Rio do Peixe, Patos, Pau de Ferro, etc. Como disse, o governo não sabe onde estamos ou, o que é muito pior, finge não saber.

Além do que foi dito, podemos afirmar que jamais o Povo Roma Brasileiro será mapeado, pois muitos Roma não se identificam como tal, por motivos óbvios. A cultura Roma é marcada pela exclusão, intolerância, injustiça e preconceitos que a castigam há séculos. No Brasil não é diferente. Falta aos Roma brasileiros a acessibilidade a documentos de identificação civil obrigatórios, saúde pública, ensino público e permanência na escola, espaços urbanos para armarem as suas barracas, inclusão social e cultural e, principalmente, a garantia da preservação das tradições, das práticas e do patrimônio cultural de um povo que está no Brasil desde 1562, embora haja quem diga 1574. Finalmente devo dizer que alianças entre povos tradicionais até podem existir conforme as similaridades existentes de alguns temas abordados pelos movimentos em geral. Mas, isso é incontestável, cada comunidade com seu uso, cada roca com seu fuso. Os problemas enfrentados por todos são inúmeros e não dá para endossar todas as lutas. Seria o ideal, mas...

Nicolas Ramanush: Como ficou claro na resposta anterior, a atuação da Embaixada Cigana do Brasil é 90% cultural. Nosso envolvimento na militância política se dá dentro desse contexto. O que posso garantir é que não existe no Brasil estatísticas seguras com relação ao número da população Roma. E isso ocorre pelo fato de que: quando um militante Roma é indagado sobre a quantidade de sua etnia, costuma aumentar o número (pois é óbvio, trata-se de uma estratégia para chamar a atenção para a tal "invisibilidade"). Por sua vez, o governo, através do IBGE não realiza um Censo corretamente técnico. E para piorar, tende a diminuir os números, criando a "invisibilidade", para que as devidas ações políticas de integração não sejam cobradas pela baixa demanda. Agora, quanto aos Direitos Roma não podemos esquecer que a pessoa denominada, genericamente, de roma é cidadã brasileira como qualquer outra (ainda que possua uma etnia diferenciada da população em geral, nasceu aqui e teve até a geração de seus bisavós nascidos aqui).

Em última instância podemos dizer que o Roma brasileiro, e em particular o grupo Caló, é tratado como um cidadão de quinta categoria. E aqueles que quiserem conhecer os Direitos Ciganos podem acessar este link em nosso website: Embaixada Cigana

migrazine.at: Atualmente os Roma têm representação no Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial (CNPIR) e na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No entanto, os dois órgãos são apenas consultivos. Um dos principais problemas enfrentados é a falta de acesso à educação. Há quantos anos existe a Associação e quais as conquistas e perspectivas políticas?

Márcia Yáskara Guelpa: A CERCI- Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana foi fundada em fevereiro de 2007. Atualmente desconheço o que a CNPIR e a CNPCT tem feito em relação à educação da Comunidade Roma. Prefiro não falar sobre a Educação dos Roma. Antes teríamos que abordar o problema da educação no Brasil como um todo. Então, seria necessário escrever algumas laudas. As mulheres Roma leem o futuro nas linhas das mãos. Mas o futuro do Roma está nas mãos dos órgãos públicos, da sociedade e dos governos que precisam fazer esforços para proporcionarem dignidade e real inclusão social de uma comunidade que aguarda ser respeitado e exercer seus direitos fundamentais. Aguardemos... (Márcia sorri)

Nicolas Ramanush: A Embaixada Cigana do Brasil - Phralipen Romani existe há 29 anos. Dos quais, 26 atuando de modo informal e 3 com CNPJ. Nossas maiores conquistas até o momento foram:

- há treze anos ministramos cursos de extensão cultural e pós-graduação sobre a História da Cultura Cigana em universidades paulistas. Sendo este um projeto pioneiro, na América Latina, nessa área;

- fomos os primeiros Roma da América Latina a editar livros sobre nossa língua: Palavras Ciganas (vocabulário e gramática Romani-Sinte) lançado em 2009 e Los Hermanos Caló y Calon (um ensaio sobre esses dialetos do Romani) lançado em 2011 na Espanha durante participação no III Seminário Internacional Rroma;

- conseguimos transpor o preconceito e as divergências existentes entre as comunidades, pois, temos membros de origem Sinte, Calderash, Xorarano e Caló. Unidos e trabalhando em prol dos demais;

- conseguimos o reconhecimento internacional, com relação aos projetos que desenvolvemos na área cultural para minimizar o preconceito e a discriminação. Já estivemos desenvolvendo esse projeto Romani Rota na África, Eslováquia, França e Espanha. E o número de países não é maior por conta que realizamos isso sem auxílio governamental, contando apenas com nosso simplório fundo de caixa;

- e recentemente passamos a ter certo reconhecimento em nosso estado, São Paulo, a partir do convite do SESC para o desenvolvimento do projeto Romani Rota. Cujas apresentações ocorreram em algumas unidades dessa instituição durante o ano de 2011. E terá continuidade em 2012.


Nota

[1] é uma autodenominação para abranger as comunidades Roma, Sinti e Calon
[2] é uma autodenominação, abrange as comunidades Roma, Sinti e Calon

Entrevista: Farah Chagas

Márcia Yáskara Guelpa é formada pela USP – Universidade de São Paulo em Letras e Pedagogia, Pós graduada pela USP em História da Educação e Teoria Literária; Palestrante sobre a cultura cigana, Presidente da CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana, Trabalhou durante anos nos seguintes veículos de comunicação: Revistas Manchete,Vogue, Isto É, Nova, GMagazine, dentre outras e no Jornal da República, do Mino Carta; Representou o Povo Cigano na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais até 2010.
Nicolas Ramanush é prof. universitário e escritor, presidente da Embaixada Cigana do Brasil - Phralipen Romani, e Membro de Honra da Association Santoise de Gitans – França, é do clã Sinte-Valshtike. is university professor and writer president of the Embaixada Cigana do Brasil - Phralipen Romani member of honor of the Association of Santoise Gitans - France, and he is from the clan Sinte-Valshtike.